Apresentação
Esse blog tem como base principal os textos "O Sentimento da Infância", "A Descoberta da Infância" e "Os Dois Sentimentos da Infância" do livro História Social da Criança e da Família de Philippe Ariès, elaborado como trabalho pedagógico da disciplina de História da Educação, lecionada pela Professora Iracilda Pimentel Carvalho da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.
A descoberta da infância
A descoberta da infância começou, sem dúvida, no século XIII e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII.
Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la, o que nos leva a pensar que não houvesse lugar para a infância nesse mundo. Esse desinteresse é mostrado nas pinturas dessa época, pois essas pinturas sempre que mostravam figuras de crianças, o que acontecia em raríssimos casos, mostravam imagens de uma nudez de crianças com musculatura abdominal e peitoral de um adulto, ou seja, eram apenas figuras de pessoas pequenas com corpo de adultos.
O século XIII continuou fiel a esse procedimento, de modo que, na Bíblia as crianças são representadas com maior frequência, mas nem sempre caracterizadas por algo além de seu tamanho. Vemos, assim, que no mundo das fórmulas românicas, e até o fim do século XIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido. Isso pode ser explicado pelo fato de que a infância era um período de transição que passava rápido e cuja lembrança era logo perdida.
As crianças não tinham grande importância naquela época pois não se pensava que elas já tivessem personalidade de um homem e morreriam facilmente e em grande número, pensando-se, assim, que mal elas entravam na vida e já estavam muito susceptíveis à morte. Desconfia-se que a criança era tão insignificante que quando morria não se temia que ela voltasse para importunar os vivos.
Nossa Senhora menina com seu pai Joaquim e sua mãe Ana. |
No século XIII surgiram alguns tipos de imagens de crianças um pouco mais próximas do sentimento moderno. Isso ocorreu com a aparição da imagem de anjos e logo depois, no século XIV, apareceram os modelos ancestrais de todas as crianças pequenas da história da arte: o menino Jesus, ou Nossa Senhora menina, pois a infância se ligava ao mistério da maternidade da Virgem e ao culto de Maria. Um terceiro tipo de criança apareceu na fase gótica, com a criança nua (o menino Jesus quase nunca era representado despido), isso porque na arte medieval francesa, a alma era representada por uma criancinha nua e em geral assexuada. Durante o século XIV e sobretudo no século XV, esses tipos medievais evoluíram e o tema da infância sagrada, a partir desse século, não deixaria mais de se ampliar e de se diversificar.
Nos séculos XV e XVI a criança se tornou uma das personagens mais frequentes das pinturas anedóticas, mostrando a criança com sua família, com seus companheiros de jogos, na multidão (mas ressaltada no colo de sua mãe, ou brincando) e em várias outras situações cotidianas daquela época. Essas novas aparições nas pinturas podem ser explicadas pelo fato de as crianças sempre estarem no meio dos adultos, pois toda reunião para o trabalho, o passeio ou o jogo reunia crianças e adultos e também pelo fato de que os pintores gostavam de representar a criança por sua graça.
O aparecimento do retrato da criança morta no século XVI marcou um momento muito importante na história dos sentimentos. Esse retrato seria, inicialmente, uma efígie funerária, onde a criança, no início dessa nova época, não aparecia sozinha e sim sobre o túmulo de seus pais. Mas as crianças que cercavam os defuntos nem sempre estavam mortas, era toda a família que se reunia em torno de seus chefes, como no momento de recolher seu último suspiro. Desse modo, começamos a perceber o carinho e respeito às crianças em quadros e túmulos, mas hoje vemos que existem registros de que já no fim do século XVI foram construídos túmulos com efígies de crianças isoladas.
No início do século XVII os retratos de crianças se tornaram muito numerosos, percebendo-se que havia sido criado o hábito de se conservar através da arte do pintor o aspecto fugaz da infância, de modo que nessas novas pinturas a criança era representada sozinha e por ela mesma, sendo nesse momento um dos modelos favoritos para as pinturas. Cada família, a partir de então, queria possuir retratos de seus filhos, mesmo na idade em que eles ainda eram crianças. Foi como se a consciência comum só então descobrisse que a alma da criança também era imortal. Foi também nesse século que os retratos de família tenderam a se organizar em torno da criança, dando à criança um lugar privilegiado, com inúmeras cenas de infância de carácter convencional: a lição de leitura, de música, ou grupos de meninos e meninas lendo ou brincando.
Uma outra representação da criança desconhecida da Idade Média é o putto, a criancinha nua. O putto surgiu no fim do século XVI, aparecendo nas pinturas religiosas, na imagem de anjos , do menino Jesus e de crianças sagradas. A nudez da criança, a partir de então aparece ou completamente nua ou vestida com trajes que não se cobrem toda a nudez e a deixa, intencionalmente, transparecer, mas é claro que o gosto pela nudez da criança estava ligado ao gosto pela nudez clássica, que pode ser vista em várias pinturas antigas.
A invenção da infância
1º sentimento de infância é o da “paparicação” quando as crianças pequenas passam a ocupar um lugar no olhar, na diversão e nas brincadeiras dos adultos (séculos XV e XVI). Tem-se aqui a imagem “engraçadinha” da criança.
“No século XVII, de um infanticídio secretamente admitido passou-se a um respeito cada vez mais exigente pela vida da criança” Em grande parte pela cristianização dos costumes, as crianças começam a ser batizadas e ganham presença cada vez mais central nas representações artísticas.A alma da criança é reconhecida antes que seu corpo e associada com as novas práticas de higiene, as primeiras vacinas e ao controle da natalidade cada vez mais difundido surge um cuidado com os filhos vivos. Juntamente com isso, família torna-se o lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos, algo que ela não era antes.
A criança sai de seu antigo anonimato, ganhando uma crescente importância no meio familiar, incrementando-se os cuidados cada vez mais exigentes pela preservação de sua vida. Esse sentimento de família fortalece os laços entre mãe e criança e põe em destaque a construção de um novo lugar social da mulher, que será definido pela maternidade. No final do século XVII culmina o processo de algumas mudanças consideráveis, no que se refere às crianças, às famílias e aos costumes. A escola começa a representar o lugar da educação, em detrimento da aprendizagem no convívio direto com os adultos, de quem especialmente as crianças mais abastadas vão sendo paulatinamente separadas. Tem início seu enclausuramento, disciplinarização e vigilância constantes, por meio da escolarização e em decorrência do surgimento de um 2º sentimento vinculado à infância: o de fragilidade e inocência. Em contraposição à infância ignorada, ganha força o conceito da debilidade e da fragilidade da criança. Os costumes vigentes passam a prestigiar o recato do comportamento, o pudor com o próprio corpo, a reserva na linguagem e o controle sobre a convivência, as diversões e até sobre a leitura adequada a crianças e adultos. O apego à infância deixa de se exprimir pela brincadeira e passa a ser veiculado por meio da preocupação moral. O 1º sentimento de infância nasceu na informalidade do convívio social e familiar. O 2º sentimento de infância surgiu fora da família, entre os eclesiásticos, os homens da lei e o moralistas, preocupados com a racionalidade dos costumes e com a disciplina. Essa nova doutrina moral influenciou fortemente o papel da família e o modelo educacional vigentes até os dias de hoje.Determinou também o deslocamento da vida social do espaço público para o espaço privado. É a partir dessa época que o castigo corporal se generaliza, tornando-se uma característica da nova atitude diante da infância. Concomitantemente, na sociedade, uma concepção autoritária,hierarquizada e absolutista ganha hegemonia. Cabe destacar que essas mudanças nas representações sociais sobre a família e sobre a infância não ocorreram da mesma maneira entre ricos e pobres ou com relação a meninos e meninas.A intimidade da vida privada, em oposição à convivência privilegiada na coletividade, se estabeleceu muito antes e mais marcadamente entre os ricos.Assim como o movimento social de escolarização demorou quase dois séculos para ser destinado também às meninas, qualquer que fosse sua classe social. Desta forma a criança não era detentora de direitos específicos as suas individualidades. No período Renascentista "nasce" o sentimento da infância, porém este sentimento não era uniforme e homogêneo. Salienta-se que, na maioria das vezes, o sentimento da infância estava "reservado" às elites, que dispunham dos meios necessários para garantir tratamento diferenciado com saúde, educação e cuidados para com os seus filhos. A classe pobre não podia gozar deste sentimento, haja vista que necessitava que seus filhos, tão logo conseguissem se mover sozinhos os ajudassem nas tarefas e no trabalho.